29 novembro, 2005

Rodrigueana

Ali deitado, pensei, Sou um personagem de Nelson Rodrigues. Eu era um jovem ordinário, que gostava de sair com os amigos, tomar cerveja, jogar sinuca e conversa fora. Até que conheci Helena, jovem folgosa, de porte mignon e cabelos bem pretos até o ombro. Foi paixão a primeira vista, ou antes, tesão. Ela era colega de trabalho do Odair. Direita, de família, mas botequeira como poucas. Era perfeita, salvo um pequeno detalhe, tinha um namorado. Um tipo alto, cabelo raspado, fala mansa e insuportavelmente simpático. Mauro também trabalhava com Odair, se conheceram no trabalho há pouco mais de um ano e já faziam planos de casar.

Não era do meu feitio, mas na noite em que fui apresentado a Helena, no boteco embaixo do escritório do Odair, passei todo tempo flertando com o olhar, sem que Mauro se apercebesse. Quando ele cruzava comigo o olhar eu sorria um tanto sem graça e ele numa simpatia desmedida, fazia um gesto como de continência. Ela se ria marota. E na despedida chegando no cangote da pequena, sentido o cheiro doce de seu perfume, misturado com meu próprio hálito de embriaguez sussurrei, Com uma pequena como você, fazia miséria, largava tudo e me casava. E me afastando disse em bom tom, Foi um prazer, nos vemos por aí. Ela chegando no outro lado, Domingo onze horas na porta lateral da igrejinha. E afastando-se disse alto, Igualmente. Com o Mauro a despida foi um aperto de mãos, dois tapinhas no peito e um comentário, Olha, ouvi dizer que na sinuca você é o maioral, depois quero umas dicas, porque nem do Odair estou ganhando ultimamente, Quando quiser, ganhar do Odair é comigo mesmo.

Passei o sábado prostrado na cama, pensando na vida como ela é… E relembrando aquelas velhas histórias que têm mais de realidade que a própria vida, conclui, Nesse tipo de situação o sujeito sempre acaba matando o outro ou sendo morto pelo mesmo. Morrer tão novo eu não queria, por nenhuma pequena que fosse. Matar um cara bacana como o Mauro parecia o fim para mim. Estava numa sinuca de bico. Não fui à igreja domingo, fui ao boteco beber para olvidar. E na mesa de sinuca estava Mauro sorridente e falastrão, me vendo declarou, Opa, é hoje que vou ter umas dicas do Rui Chapéu aqui, e me chamou com um gesto largo. Chegando perto lhe bati no ombro três vezes e disse, Quer uma dica? Ao invés de vir jogar sinuca aos domingos, vá à igreja com sua pequena, ou você termina acaçapado. Virei de uma vez e a passos largos fui me embora da minha aventura rodrigueana.






Leonardo de Oliveira Cunha  20/06/05

23 novembro, 2005

Todo dia

Todo dia, não falhava um. Acordava escolhia uma galinha das que viviam no quintal nos fundos da casa e a matava, com um certeiro e profundo corte no pescoço pelado. O sangue vermelho e caldolento escorria e preenchia uma bacia azul de plástico. Seguiam-se todos os procedimentos de preparo de uma galinha. Quando a dita estava no ponto de ser posta na panela, ele a guarda no pequeno freezer horizontal que congestionava a pequena cozinha/copa. Estando tudo em ordem, voltava ao quintal agora para alimentar as galinhas sobreviventes. As sete horas da manhã, João, esse era seu nome, ia trabalhar. Não importa o que fazia, era mais um João trabalhando para um patrão, nesta forma capitalista de escravidão. Voltava a noite, só então via o filho e a mulher. Amava muito os dois, mas a mulher vivia desolada, pois na verdade sonhava em ser madame e viver uma vida de revista de fofocas. E o filho no seu universo de colégio e futebol via o pai como um estranho conhecido, que o beijava a testa cada noite e dormia com sua mãe. João seguia sua rotina de segunda a sexta sem reclamar. E no sábado pela manhã depois de repetir seu ritual quase religioso não punha o animal recém sacrificado no freezer e sim recolhia os outros seis que estavam ali os deixava sobre a pia degelando. Enquanto isso pegava uma desproporcional panela, a posicionava no fogão de lenha construído por ele mesmo. Colhia no quintal alguns vegetais providenciais. E fazia por toda a manhã uma bela galinhada. Quando tudo estava pronto, fumegante, e fragrante, servia pequenas porções em vasilhas descartáveis as quais ganhava mensalmente de uma empresa de embalagens. Saia então no seu carro precário em busca dos necessitados e com um misto de tristeza e satisfação oferecia o alimento àqueles que recebiam com a ânsia dos famintos. Em meia hora estava tudo consumado e consumido. No domingo depois de guardar a ave no freezer vazio ia à missa. Rezava a Deus para que desse pão aos que têm fome e fome de justiça aos que têm pão. Ou por outra, que desse galinha a quem têm fome e pena a quem têm galinha.

 Leonardo de Oliveira Cunha 

31/05/2005